Erika Cassandra de Nicodemos*

 

Na mídia, nas instituições de ensino, na política, nas conversas de bar, enfim, seja onde for, a expressão “empoderamento feminino” tornou-se, praticamente, um mantra. Creio que a maioria das mulheres, em geral, sem muita reflexão sobre o tema, chancele o jargão, já que, ao menos à primeira vista, traz a sensação de ser elogioso ou quiçá, um presságio de algum tipo de revolução em prol da ala feminina do mundo. A sensação de angariar poder é, inegavelmente, boa. A minoria, por sua vez, que critica o termo, em que pese o ordinário verniz de erudição, parece ter, igualmente, em regra, pouco respaldo em argumentos e pensamentos meticulosos. Repetem-se, indiscriminadamente, os mesmos chavões. Por exemplo, certa vez, assisti a uma entrevista concedida por uma repórter famosa em que ela dizia não gostar da “palavra empoderamento feminino” porque conferiria a impressão de ser necessário que o poder fosse outorgado às mulheres, o que seria falacioso, pois já o deteríamos. Sem adentrar na minúcia acerca da coerência deste fundamento (ou de outros igualmente vagos), questiono a sua relevância prática. Para mim, discutir se as mulheres estão, hoje, empoderadas, se já eram detentoras de poder ou se esse poder lhes foi outorgado por alguém deveria vir muito depois de compreender, afinal, o que é poder para nós, mulheres.

Evidentemente, quanto a isso, há respostas fáceis e prontas. Existe, claro, o óbvio. É natural que ter poder abranja ter direitos, como direito à liberdade, à autodeterminação, à igualdade, à integridade (física, psíquica e emocional), à saúde, à educação, à livre iniciativa e, sobretudo, à dignidade. Entretanto, um olhar minimamente atento revela que esses direitos não se estendem para além dos direitos básicos inerentes a qualquer ser humano, independentemente de gênero. Penso que ser titular de um verdadeiro poder seja muito mais do que ter e poder exercer direitos básicos. Vejam, não estou contestando a incomensurável relevância teórica e prática de garantir que as mulheres sejam, efetivamente, titulares destes direitos e que possam exercê-los plena e integralmente. O que afirmo é que lutar para que as mulheres sejam titulares de direitos básicos e que possam os exercer não se confunde inteiramente com sermos detentoras de poder. Ter direitos e poder exercê-los é apenas pré-requisito, quiçá, uma porta de entrada para o poder. Misturar estas ideais, creio eu, está muito mais associado com uma perspectiva claramente política do tema. Afinal, esse enlace conceitual de assuntos (ainda que acintoso) leva a uma clara dicotomia capciosa: se os conceitos de poder e titularidade de direitos se confundem, alguém a favor do tal empoderamento feminino seria, automaticamente, a favor dos direitos básicos das mulheres, bem como de seu exercício. Na contramão, quem negasse o empoderamento das mulheres seria, então, opositor aos seus direitos e, assim, ratificador do machismo estrutural, afrontando, no final das contas, os contemporâneos valores sociais supremos do justo e do solidário.

Todas essas divagações que dão margem a tanta elocubração ideológica e debates regados a pedantismo oco não me parecem, de fato, impactar e tirar o sono das mulheres de carne e osso com que convivo. Não nego, claro, que exista um percurso ainda longo a seguir na busca por outros direitos relevantes e seu exercício, em especial, quando estamos diante de classes menos favorecidas. No entanto, a verdade é que eu vejo, sim, ao meu redor, as mulheres desfrutarem daquilo que já foi conquistado. As mulheres no meu entorno, em sua grande maioria, estudam, têm empregos e carreiras, têm liberdade (de ir e vir, de planejar sua família, de seguir sua vocação, de manifestar suas ideias, de exercer qualquer profissão...), têm segurança (aquela que é viável em um país como o Brasil por ora), têm acesso à saúde (às vezes mais, outras menos a depender da condição social, não do gênero), têm acesso à justiça (sim, o judiciário segue machista, mas este será outro assunto), têm participação política crescente... Enfim, eu enxergo mulheres detentoras de direitos de que não eram titulares outrora exercendo-os, de modo geral, ainda que não em sua plenitude, já de maneira razoável. É inegável que, sendo eu uma mulher de classe média alta, tenho mais acesso e familiaridade com estas mulheres. Dito isto, não me atreverei a discorrer, logicamente, sobre uma acurada análise social sobre o quanto mulheres de cada classe detém direitos e desfrutam deles, mas arrisco dizer que, em menos de cem anos, houve progressos colossais de que todas nós gozamos, graças ao que nossa vida é completamente diferente da que viveram nossas mães e avós.

Todavia, ainda assim, ao me deparar com as mulheres de hoje, que desfrutam de tantas vitórias, não vislumbro mulheres poderosas. Eu enxergo mulheres exauridas, sobrecarregadas, solitárias (dentro e fora de relacionamentos), viciadas em trabalho e ascensão, entorpecidas por antidepressivos e ansiolíticos, assoladas por intensos sentimentos de culpa e remorso (sobretudo em relação a filhos), enterradas em infindáveis sessões de terapia por acreditarem que são problemáticas, frustradas por não atingirem padrões de beleza inalcançáveis, dispostas a colocar a saúde em risco pela silhueta ideal, entupidas de hormônios em busca do último suspiro de energia, perdidas entre os tantos caminhos que a liberdade oferece, emocionalmente frágeis e instáveis, pretensamente autossuficientes (quiçá, soberbas), confusas quanto ao papel a desempenhar nos relacionamentos amorosos e na família, obcecadas por juventude eterna, consumistas como se o seu valor dependesse do que podem comprar, acumuladoras de funções supérfluas, prevaricadoras e procrastinadoras de funções relevantes, altamente preconceituosas em relação aos nossos próprios atributos femininos.... Talvez, tenhamos passado tanto tempo invejando a supremacia dos homens que tenhamos, sem notar, internalizado que atributos preponderantemente masculinos, como competitividade, agressividade, inflexibilidade, racionalidade e independência são os que definem o valor de uma pessoa tanto nas relações particulares quanto profissionais. Em vista disso, relacionamos nossos atributos femininos, como sensibilidade, empatia, intuição, flexibilidade e tolerância, com fragilidade e vulnerabilidade e, consequentemente, com o risco de nova subjugação. Por esse motivo, creio que estejamos nos espremendo para ocupar uma posição no mundo que, embora seja nossa, deva ser preenchida da nossa própria forma, expressando nosso poder pela nossa feminilidade. De maneira oposta, seguimos buscando poder (na verdade, mais que poder, realização e felicidade) sob a perspectiva dos homens, ignorando nossas verdadeiras necessidades e anseios.

Ouso dizer que usamos nossa liberdade recém conquistada de forma irresponsável e inconsequente, enjaulando-nos em novas gaiolas, de esponte própria, ainda mais difíceis de escapar dadas as suas grades pouco evidentes. Sob a euforia desta liberdade, repetimos que “o lugar da mulher é onde ela quiser”. No entanto, isso não significa que a mulher deva estar em todos os lugares, dedicando-se, com excelência, ao número máximo de atividades e funções que encontrar pela frente. Captamos o emblema, na prática, como obrigação de onipresença. Decidimos abraçar o mundo sem pedir ajuda, sem saber previamente se estavam dispostos a ajudar e, principalmente, sem reconhecer e estabelecer nossos limites. Buscamos ser, ao mesmo tempo, a profissional de alta performance com remuneração exorbitante, a mãe presente e pessoalmente responsável pela gerência do lar, a esposa compreensiva, acolhedora e fogosa, a esportista, a saudável, a capa de revista, a filha cuidadosa, a amiga conselheira e pontual, a filantropa habitual, a ativista do meio ambiente, a tutora de pet e, ainda, dormir bem, reservar momentos de lazer, ter vida social e dedicar-nos a, pelo menos, dois hobbies. E, contrariando o bom senso, sentimo-nos extremamente desapontadas conosco com o deslinde óbvio dessa tentativa inócua, ou seja, o desempenho de todas ou, ao menos, de muitas destas funções de forma medíocre ou o adoecimento inexorável. A ampliação de nossos direitos não nos trouxe superpoderes ou nos transformou em malabaristas para que estivéssemos aptas a equilibrar tantos pratos. Alguns sempre caem e, com eles quebrados, temos também arranhadas nossas autoestimas prepotentes. Somos uma geração doente de mulheres que se envenenou com o antídoto e estamos criando uma geração de mulheres igualmente enfermas, tendentes a crer, em vão, que tem capacidade sobre humana. Para romper o ciclo, é preciso que aprendamos a escolher. Não é porque a comida está servida na bandeja que precisamos nos empanturrar. Selecionar é difícil, pois implica não apenas renunciar, mas também reconhecer os próprios limites. E escolher bem, significa, no fim das contas, entender e perseguir o que realmente é valioso, do que, a meu ver, enquanto nos comportarmos como crianças mimadas e birrentas que não querem abdicar de nada, não seremos capazes.  

Chego, assim, à conclusão de que não estamos empoderadas, mas deslumbradas e entorpecidas com conquistas relevantes no campo social, jurídico e político que, lamentavelmente, não serviram de alavanca para que, de fato, alcançássemos o verdadeiro poder sobre nossas vontades, nossos pensamentos, nossos ideais e nossas vidas. E continuaremos agrilhoadas na caverna de Platão até que sejamos capazes de reconhecer e compreender o poder e as verdadeiras necessidades de nossa essência feminina, bem como de fazer boas escolhas e de ser resilientes em relação a elas. Possivelmente, quando, enfim, nos alforriarmos, abandonaremos essa batalha inglória em que competimos com os homens e passaremos a ocupar nosso próprio, devido e exclusivo lugar de destaque e relevância na sociedade. E, assim, encontraremos o verdadeiro poder e felicidade na paz que nunca sentimos.




*Erika Cassandra de Nicodemos, advogada especialista em direito de família e sucessões, graduada pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas,  mestre em Direito Privado Europeu pela Facultá degli Studi di Roma, mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, professora universitária